Sônia Guimarães abre IX Artefatos da Cultura Negra com palestra

Publicado em 18/09/2018. Atualizado em 31/10/2022 às 11h19

Fernanda Simplício (DCOM/UFCA)

O IX Artefatos da Cultura Negra foi oficialmente aberto, na manhã desta terça-feira (18), com a palestra “O que eu faço contra o racismo?”, da professora e física paulista, Sônia Guimarães. O auditório Maria Beata de Araújo, no campus Juazeiro do Norte da Universidade Federal do Cariri (UFCA), recebeu a comunidade acadêmica para prestigiar a fala de Sônia – licenciada em Ciências pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), mestra em Física Aplicada pela Universidade de São Paulo (USP) e primeira mulher negra do Brasil com doutorado (em Materiais Eletrônicos, pela Universidade de Manchester, na Inglaterra). Atualmente, é professora do renomado Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). E conseguiu tudo isso sendo negra e mulher, trabalhando há 25 anos em uma instituição que só permitiu o ingresso de estudantes mulheres no fim de 1995.

Antes da fala de Sônia, compuseram a mesa de abertura o Reitor Pro-Tempore em exercício da UFCA, Juscelino Pereira, o Vice-Reitor da Universidade Regional do Cariri (Urca), Francisco Lima Jr., a ativista Valéria Neves Carvalho, do Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec) e o professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e membro da comissão organizadora do evento, Henrique Cunha. O professor Henrique fez uma breve fala explicando do que se trata o Artefatos da Cultura Negra: “estamos aqui movidos pela africanidade, refletindo a importância da cultura negra na vida de cada um de nós, no Brasil do presente, no Brasil do passado e, principalmente, no Brasil do futuro”, disse. Complementando o professor, o Vice-Reitor da Urca, Lima Jr., destacou a escolha do nome do evento: “não é um seminário, não é um congresso. O evento chama-se ‘Artefatos’, nome que une ‘artifício’ e ‘fazer’. Então o Artefatos se propõe a ser um instrumento para a construção da realidade a partir da concretude dos fatos. É portanto um debate que não para no evento, mas se propaga em lutas no cotidiano contra o racismo”, explica.

“O que eu faço contra o racismo?”

No início da sua contribuição, a professora Sônia Guimarães lembrou as dificuldades adicionais enfrentadas por negros na corrida por posições de destaque – como a pobreza e o encarceramento juvenil – e de que modo ela conseguiu chegar onde chegou: “Eu não ia dar murro em ponta de faca, porque só iria cortar a minha mão. Os racistas nunca te proíbem de tudo… Sempre há uma brecha. É preciso aproveitá-la”, disse. 

Segundo Sônia, foi preciso estudar e trabalhar muito mais que os colegas homens e brancos, superando obstáculos que eles não tiveram e ignorando frases de desestímulo: “Eu estudava em uma turma especial nos tempos de escola e a filha da faxineira queria entrar nessa turma. Adivinha quem escolheram para tirar da turma especial e dar lugar a ela? A única negra que havia lá, claro: eu. Já ouvi de uma professora de física que eu nunca aprenderia física. O orientador da minha tese, no dia anterior à entrega do material para a banca avaliadora, disse que meu trabalho precisava ainda de muitas correções – e, pouco tempo depois, ouvi de membros da banca que aquela havia sido a melhor tese apresentada por um não britânico até então, naquela universidade. Já ouvi de alunos do ITA que minhas roupas chamavam atenção para o meu corpo, que sou a pior professora do Instituto… Brancos racistas acreditam que não brancos são inferiores exatamente porque somos minoria nas universidades, nos melhores postos de trabalho, mas não ocupamos esses postos na mesma proporção que eles principalmente pelas barreiras que o racismo impõe. Aí, é preciso dar a volta nesse muro, mas o caminho, logicamente, fica mais longo. E eu não posso desistir, porque eu não vou deixar que digam ‘Eu não disse que ela não dava conta?'”, sintetiza. Ao fim da palestra, no espaço destinado a perguntas, professores e estudantes compartilharam suas vivências e se identificaram com a trajetória da professora convidada. 

Vestibular ITA

Em 2019, pela primeira vez, o ITA vai aderir ao sistema de cotas para estudantes negros. E esse é o principal motivo para que Sônia repense os planos de se aposentar, apesar de já ter tempo de serviço o suficiente para encerrar a carreira na instituição: “Eu poderia me aposentar em 3 de agosto de 2019. Por mim, eu me aposentaria no minuto seguinte, mas como eu poderia não dar aulas para eles (cotistas)? 22 alunos negros vão ingressar lá no ano que vem por cotas – e se eles reprovarem em uma disciplina que seja, não poderão concluir o curso. Eu sei que alguns (professores) ali teriam prazer em reprovar alunos que vão ingressar por cotas. Eu quero estar junto nessa briga”, afirma, lembrando que nunca teve mais de 4 alunos negros em uma mesma turma. Sobre a discussão se as cotas deveriam ser raciais ou socioeconômicas, Sônia não demora muito para se posicionar: “(Nas cotas socioeconômicas) colocam um monte de pobre branco (nas universidades e nos cargos do serviço público)”. Já sobre a suposta maior dificuldade que cotistas teriam para concluir cursos renomados, a professora acredita que isso já ocorre com alunos brancos: “O curso do ITA é dificílimo e muitos alunos brancos já têm problemas para concluí-lo. Essa preocupação (com a bagagem necessária para cursar carreiras exigentes) deveria ser com todos os alunos e não apenas com alunos negros”, opina.

Nessa trajetória de produção acadêmica resistente, Sônia já recebeu diversas homenagens, como o Troféu Raça Negra – criado em 2000, em meio às festividades dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil: “Na época, construíram naus, premiaram diversas pessoas brancas, por diversos motivos, mas nenhum não branco havia sido lembrado até então. Aí, criaram esse prêmio e me deram”, relembra com bom humor. Até hoje, o Troféu (entregue sempre no Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro) reconhece o trabalho de pessoas que contribuem para a valorização da população negra na sociedade brasileira.

Além desse prêmio, o coletivo negro criado por estudantes do Instituto de Física e do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP foi batizado com o nome da pesquisadora. Sônia é lembrada ainda em diversos livros e rankings de exaltação da negritude e têm acumulado convites para palestras em todo país. Afora as homenagens e prêmios, Sônia é fundadora da Federação das Religiões Afro-Brasileiras (Afrobras) e é responsável pela Universidade Zumbi dos Palmares, que tem 90% de seus alunos negros. Sônia também compõe o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), do governo federal. Criado em 2003, o conselho busca viabilizar o diálogo entre governo federal e a sociedade. As principais contribuições de Sônia no CDES estão no campo do sistema eleitoral e no sistema de impostos. 

IX Artefatos da Cultura Negra

A nona edição do Artefatos da Cultura Negra continua até o próximo dia 22 de setembro, no Crato e em Juazeiro do Norte. O evento é fruto da parceria entre a UFCA, a URCA, o Grunec e o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais (NEGRER). A programação envolve palestras, oficinas e, pela primeira vez, uma mostra de cinema. Visite o site do evento.