10 anos da Lei de Cotas: política de ações afirmativas na UFCA contribuiu para ampliar o acesso ao Ensino Superior no Cariri
Publicado em 03/11/2022. Atualizado em 03/11/2022 às 10h24
A Universidade Federal do Cariri (UFCA) já nasceu com a perspectiva de ser uma instituição inclusiva, democrática e que acolhe a diversidade. Antes de se tornar uma universidade autônoma, era campus da Universidade Federal do Ceará (UFC) – criado na década de 2000, em um período de expansão do Ensino Superior para o interior do estado.
Assim que se tornou universidade, em 2013, a UFCA assumiu o papel de ampliar e fortalecer a interiorização das vagas de Ensino Superior na região do Cariri. Na época, também já estava em vigor a Lei Federal nº 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, que, este ano, no mês de agosto, completou uma década e deve passar por processo de revisão.
A lei prevê a reserva de 50% das vagas em universidades e institutos federais para pessoas que estudaram em escolas públicas. Desse total, metade é destinada à população com renda familiar de até 1,5 salário mínimo per capita.
Dentro dessas reservas, está a distribuição das vagas da cota racial e de deficiência. A distribuição é feita de acordo com a proporção de indígenas, pretos, pardos e pessoas com deficiência da unidade da federação onde está situada a universidade ou instituto federal, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Dessa forma, pessoas que historicamente sofreram com inacesso à Educação de qualidade, desigualdade socioeconômica, racismo e outras discriminações passaram a poder ocupar espaços no Ensino Superior público antes destinados a poucos brasileiros, que não precisaram conviver com essas mesmas dificuldades.
De acordo com o professor da UFCA Reginaldo Ferreira Domingos, coordenador do Núcleo de Estudos em Educação, História, Diversidade, Raça, Etnia e Movimentos Sociais e presidente da Comissão de Heteroidentificação da Universidade, a Lei de Cotas é fruto de luta do movimento negro: “Quando o movimento negro lutou pelas políticas afirmativas, vieram junto outras cotas, como as cotas sociais e as cotas para pessoas com deficiência”, disse.
A Lei de Cotas, conforme o professor, surge dentro de um contexto de implantação de políticas afirmativas por um governo progressista, depois de quase um século de luta. Reginaldo cita, por exemplo, a Lei 10.639, de 2003, que inclui no currículo oficial da obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”; a Lei 12.288, de 2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial no Brasil; e, finalmente, a Lei de Cotas, a 12.711, em 2012.
“A Lei de Cotas não surge como benesse política e nem surge do dia para a noite. Tem gente que pensa que ela apareceu e pronto. Diante de todo esse movimento, de política progressista no Brasil, foram implantadas essas políticas. Por nossa instituição ser federal, ela também passou a acatar”, ressaltou Reginaldo.
Lei de Cotas na UFCA
Nascida um ano depois da Lei de Cotas, a UFCA foi criada para facilitar o acesso da população caririense – e das cidades e dos estados vizinhos – ao Ensino Superior e, dessa forma, já iniciou suas atividades numa perspectiva democrática e diversa.
Desde o começo, a UFCA equipara a entrada por ampla concorrência e por cotas, ofertando 50% das vagas para estudantes de escola pública, com reserva para pretos, pardos e indígenas, e acompanha a mudança nas modalidades, como a inclusão das cotas para pessoas com deficiência no Sistema de Seleção Unificada (SiSU), no edital 2017.2.
De 2016 até 2021, de acordo com dados da Pró-Reitoria de Graduação (Prograd/UFCA), ingressaram 5.404 novos estudantes nos cursos de graduação – 2.610 por cotas e 2.794 por ampla concorrência. O número deveria ser exatamente o mesmo para as duas modalidades, já que a reserva é feita para 50% do total de vagas. Entretanto, há remanejamento de vagas para ampla concorrência quando não há o preenchimento total por cotas.
Formas de ingresso por cotas
Quem quer concorrer às vagas reservadas por cotas para os cursos de graduação na UFCA precisa fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e aguardar a próxima edição do SiSU. No próprio sistema do SiSU, é possível identificar se a/o candidata/o concorrerá às vagas de ampla concorrência ou às vagas de cotas.
Cada modalidade tem procedimentos complementares, como a entrega de documentos específicos para comprovar o Ensino Médio feito em escola pública ou a entrega de laudo de deficiência física, auditiva, visual, mental e/ou múltipla.
No caso das cotas raciais, pretos/as e pardos/as passam pelas bancas de heteroidentificação. Já indígenas precisam apresentar documentação de identificação como membro de comunidade indígena.
Bancas de heteroidentificação
As bancas de heteroidentificação são responsáveis por verificar o fenótipo de pessoas autodeclaradas pretas e pardas. De acordo com o professor Reginaldo, que preside a Comissão de Heteroidentificação da UFCA, a necessidade de implantação desse sistema ocorreu em decorrência de denúncias de fraude na Ouvidoria da Universidade.
Assim, no primeiro semestre de 2019, foi realizada a primeira banca de heteroidentificação da UFCA, apenas para os estudantes denunciados pela suposta fraude. A partir de 2019.2, a UFCA passou a realizar o procedimento de heteroidentificação para todos/as os/as alunos/as que escolheram, por meio do SiSU, ingressar na UFCA pelas cotas étnico-raciais. Abaixo, seguem informações sobre o funcionamento das bancas na UFCA:
O procedimento, conforme professor Reginaldo, reúne cerca de cinco candidatos por vez. Ao todo, a banca atende em torno de 80 candidatos por dia, 40 por turno. “A gente explica que é um procedimento que visa garantir o direito daquelas pessoas que se colocaram como cotistas. A gente até explica também algumas vezes a importância daquele momento para os candidatos. (…) A gente se apresenta, diz quem nós somos, o que estamos fazendo ali. Então tudo isso é um processo de aproximação, de tranquilizar os candidatos”, relatou.
Conforme o professor Reginaldo, as pessoas têm poder de autodeclaração, mas legalmente é cabível passar pela banca de heteroidentificação. A intenção é sanar falhas no processo, por meio de um sistema de controle, com a participação de pessoas que têm formação no assunto e que, preferencialmente, estão trabalhando esta temática. Além disso, ainda segundo o professor, em uma sociedade racista, como a brasileira, as bancas também se tornam um processo educativo.
Acesso ao Ensino Superior
A Lei de Cotas democratizou o acesso ao Ensino Superior público, possibilitando a chegada à universidade de grupos antes excluídos desses espaços. Discente do curso de Jornalismo, Bruna Santos sempre estudou em escola pública e, desde pequena, tinha o sonho de ser jornalista. “Quando cresci, coloquei na minha cabeça que iria passar em uma universidade pública para cursar a graduação, pois era a única forma de ter um curso superior sem ter gastos ou me endividar futuramente, além de considerar a qualidade de Ensino e o próprio caráter da Educação pública”, relatou.
Aos 16 anos, em meio ao Ensino Médio, Bruna mudou-se de São Paulo para Juazeiro do Norte por questões familiares. Conforme a estudante, muitos fatores tiravam a concentração dela na época e dificultavam a dedicação aos estudos, como fazer o Ensino Médio em diferentes escolas, em diferentes cidades, não ter um espaço adequado em casa para estudar com tranquilidade e precisar se preocupar com questões familiares e financeiras: “Não tem como se concentrar em estudos vendo a sua mãe se preocupar em como manter a casa no próximo mês”, relembrou.
Em 2018, depois de enfrentar todas essas dificuldades, Bruna conseguiu ingressar no curso de jornalismo da UFCA por meio das cotas raciais. Atualmente, a estudante está no 8º semestre, quase concluindo o curso, e já comemora as oportunidades que surgiram.
Este ano ela foi uma das vencedoras da 14ª edição do Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão. A premiação nacional, promovida anualmente pelo Instituto Vladimir Herzog, tem como objetivo mobilizar estudantes de Jornalismo de todo o Brasil para a produção de pautas focadas nos Direitos Humanos.
Para Bruna, apesar de o Brasil ainda ter muito o que avançar na resolução das assimetrias para a população negra e pobre, as cotas são importantes para possibilitar o acesso à universidade a essas pessoas – o que antes era ainda mais difícil. “Por meio delas [das cotas], conseguimos ver pessoas que saíram da periferia com diplomas e algumas delas seguindo a carreira que desejam”, ressaltou a estudante.
Jefferson Araújo, estudante de Música da UFCA, enfrenta a perda total da visão desde os oito anos de idade. Por causa disso, passou muitas dificuldades para conseguir concluir o Ensino Básico nas escolas dos lugares onde morou. “Não tinha material suficiente, não tinha alguém para estar me acompanhando, me auxiliando direto e muitas coisas eu tive que fazer sozinho”, contou.
A partir do segundo ano do Ensino Médio, Jefferson passou a ter professores que adaptavam o material para ele e, com isso, o rendimento escolar dele melhorou. Em 2017, logo quando o SiSU passou a oferecer reserva de vaga para pessoas com deficiência, tentou Engenharia Civil na UFCA e passou. “Era o meu sonho. Eu dizia: ‘eu ainda vou estudar nessa universidade’”, relembrou.
Depois que ingressou na Engenharia, o estudante teve contato com estudantes de outros cursos, como o de Música. Conheceu o piano e se apaixonou, escolhendo inclusive mudar de graduação. Atualmente, Jefferson está no curso de Música e tem o suporte adequado para cumprir as atividades escolares.
Na época que iniciou Engenharia, o estudante contou que a Universidade ainda estava se adaptando, então ele não tinha acesso a tudo que está disponível hoje com mais facilidade. Além das melhorias na estrutura física, como a instalação de piso tátil, Jefferson tem à disposição a produção de material em braille e programas de computador para leitura dos textos.
Permanência no Ensino Superior
Estudantes com deficiência precisam de adaptações tanto nos espaços físicos quanto no processo de Ensino-aprendizagem para permanecerem em seus cursos superiores e concluírem as formações. Estudantes em situação de vulnerabilidade social necessitam de condições básicas para estudar, como alimentação e transporte. Estudantes que ingressam por meio de cotas étnico-raciais precisam de um ambiente antirracista e acolhedor. Ou seja: uma série de questões, para além do acesso, devem estar articuladas no ambiente universitário, garantindo que quem entra por reserva de vaga permaneça no Ensino Superior e conclua a graduação que tanto almejou.
Na UFCA, a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (Prae/UFCA) e a Secretaria de Acessibilidade (Seace/UFCA) atuam mais diretamente nessas demandas, proporcionando um ambiente adequado para o acolhimento de todas e de todos as/os estudantes.
Apoio às pessoas com deficiência
A Secretaria de Acessibilidade (Seace) é o setor da UFCA responsável por atender às demandas das pessoas com deficiência que ingressam na Universidade. A equipe técnica, composta por nove servidores, desdobra-se para acompanhar as necessidades dos 98 discentes com deficiência matriculados atualmente. Desse total, 60 ingressaram por cotas reservadas para pessoas com deficiência. No momento, 26 discentes estão utilizando diretamente os serviços do setor. Entre os serviços oferecidos, estão a disponibilização de material didático para pessoas com deficiência visual e o acompanhamento de intérprete de Libras nas atividades acadêmicas desenvolvidas por estudantes surdos.
Além disso, existe a solicitação e o acompanhamento das necessidades dos estudantes, quando precisam de ações que dependem também de outros setores, como atendimento pedagógico e psicológico, recebimento de auxílios financeiros, aquisição de mobiliários adaptados e adequações de estruturas físicas às normas vigentes.
Conforme a Seace, todo esse acompanhamento é atualizado a cada novo período letivo. “A Seace solicita à Prograd a lista inicial de ingressantes, com os nomes dos estudantes aprovados e matriculados no processo seletivo. Com essa lista em mãos, nós entramos em contato, por e-mail, telefone ou WhatsApp”, explicou a gerente da Divisão de Atendimento à Pessoa com Deficiência, Simone Ferreira.
Para entrar em contato com a Seace/UFCA, as/os estudantes podem procurar o atendimento presencial no campus Juazeiro do Norte (Bloco K, salas K01 e K208) ou o atendimento pelo e-mail atendimento.acessibilidade@ufca.edu.br. Mais informações sobre o setor no Portal da UFCA.
Assistência estudantil
Pessoas com deficiência na UFCA também podem solicitar o auxílio Tecnologia Assistiva, por meio da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (Prae/UFCA). O benefício financeiro, no valor de até R$ 600,00, pode ser utilizado por estudantes com deficiência para adquirir e/ou fazer a manutenção de um ou mais equipamentos que ajudem no acesso, na participação e no processo de Ensino-aprendizagem na Universidade.
A Prae/UFCA também disponibiliza outros auxílios que contribuem para a permanência das/dos discentes na Universidade. Entre esses benefícios financeiros, estão os auxílios Creche, Inclusão Digital, Moradia, Óculos, Saúde Menstrual, Transporte e Financeiro a Eventos.
Há também o acesso ao Refeitório Universitário (RU), com duas refeições completas – almoço e jantar. Estudantes oriundos de escola pública têm a alimentação subsidiada pela Universidade. Ou seja, atualmente pagam R$ 2 por refeição. Estudantes em vulnerabilidade socioeconômica podem solicitar a isenção total do RU. Nesse caso, conforme a Prae/UFCA, é preciso se inscrever via edital.
Os auxílios da Prae/UFCA e as formas de acesso estão disponíveis no Portal da UFCA.
Além dos benefícios financeiros, a Prae/UFCA disponibiliza gratuitamente atendimento pedagógico, psicológico e psiquiátrico para as/os discentes da Universidade.
Ouvidoria
Além dos setores que trabalham mais ativamente no acolhimento das/os estudantes, a UFCA também conta com o serviço da Ouvidoria. Nesse caso, discentes que precisam de algum atendimento específico ou que sofreram algum tipo de preconceito na Universidade, por exemplo, podem procurar a Ouvidoria, por meio da plataforma Fala.BR ou do e-mail ouvidoria@ufca.edu.br.
Segundo a ouvidora da UFCA, Aretuza Tenório, os discentes podem procurar os setores da UFCA diretamente para atendimento das suas demandas. Caso não tenham respostas satisfatórias, existe a possibilidade de entrar em contato com a Ouvidoria como uma segunda instância para ter o seu direito garantido.
“A Ouvidoria é um canal de possibilidade, de diálogo, de registro, de expor uma insatisfação, de expor uma possível irregularidade para que as providências sejam tomadas internamente”, explicou Aretuza.
Denúncias
O canal da Ouvidoria também serve para denúncia de possíveis fraudes relacionadas às reservas de vagas. Qualquer pessoa, seja de dentro ou de fora da Universidade, pode, por exemplo, denunciar candidatas/os que estudaram o Ensino Médio em escola particular, mas ingressaram na UFCA por meio de cotas que exigem curso do Ensino Médio em escola pública. Também é possível denunciar candidatas/os que querem entrar na UFCA por cotas para pessoas com deficiência, mesmo sem qualquer deficiência.
“Só é possível averiguar quando há denúncias. Nesse caso, tem a importância do controle social, para que as irregularidades não aconteçam”, ressaltou Aretuza, explicando que a Universidade pressupõe a boa-fé de todas/os as/os candidatas/os que apresentam seus documentos de comprovação do Ensino Médio ou seus laudos médicos comprovando algum tipo de deficiência.
A ouvidora informou ainda que, antes de existirem as bancas de heteroidentificação, também chegavam à Ouvidoria denúncias sobre fraudes nas cotas para pessoas pretas e pardas. Entretanto, desde que a comissão passou a ser realizada, essas denúncias cessaram, pois a banca faz o controle dessa política pública e, ao mesmo tempo, também promove um processo educativo sobre as questões raciais no Brasil.
Acesso à sonhada profissão
O acesso ao Ensino Superior possibilita não somente a formação acadêmica em uma determinada área, mas também a possibilidade de seguir em uma carreira profissional, depois dos anos de formação na Universidade. Algo que antes parecia distante ou até mesmo impossível para grupos historicamente excluídos dos espaços acadêmicos passa a se tornar realidade, por meio da reserva de vagas.
Maria Carolina Barbosa Costa atualmente é médica residente de Medicina de Família e Comunidade, em Minas Gerais, formada pela Faculdade de Medicina da UFCA, no campus Barbalha. Antes de ingressar na Universidade, Maria Carolina morava com a família em Minas. Lá, ela precisou conciliar a rotina de aulas preparatórias para o SiSU com o trabalho como auxiliar de Enfermagem (com o qual pagava a mensalidade do cursinho) para realizar o sonho de se tornar médica.
Na época, os pais não concordaram com a decisão dela, pois, para conseguir trabalhar e fazer cursinho, Carolina havia trancado a faculdade de Enfermagem que conseguia fazer por meio de subsídios do governo federal, concedido pelo Programa Universidade para Todos (Prouni). Mesmo assim, ela estava disposta a correr atrás do seu sonho – que começou a se tornar realidade em 2015, quando ela conseguiu ingressar na UFCA, por cotas raciais.
“Minha mãe trabalhava em bairros nobres da cidade e convivia com jovens ricos que estudavam em escolas boas, frequentavam cursinho de inglês desde criança, viajavam, podiam passar o dia estudando e tinham quem pagasse suas contas no fim do mês. E não via como eu poderia competir com eles, mas eu estava decidida a lutar, a correr atrás, a conseguir! De fato, foi muito cansativo. (…) Em vários momentos, bateu aquele sentimento de que eu não ia conseguir, que todo mundo que estava ali era melhor que eu”, relembrou.
Para Carolina, o sistema de cotas foi fundamental para que ela pudesse concorrer de forma mais justa. “Eu naturalmente estava em desvantagem. Sim, eu fiz cursinho, mas até para acompanhar o cursinho era mais difícil. Enquanto algumas pessoas estavam revisando um assunto, eu estava o vendo pela primeira vez”, explicou.
“Sim, a filha da empregada é médica!”
Além disso, na opinião dela, a reserva de vagas também é um caminho para democratizar o acesso a determinadas profissões, como a Medicina. Ela relatou que só se deparou com uma médica negra pela primeira vez por volta dos 20 anos. “Hoje a situação é bem diferente: as turmas são muito mais ‘coloridas’. As ações afirmativas trouxeram a diversidade para dentro da universidade”, afirmou
Apesar desse avanço, as situações de racismo ainda são presentes. Carolina relatou que já chegaram a dizer que ela não tinha “cara de quem fazia Medicina”, pois não era branca, nem tinha cabelo liso. A opressão social também foi uma outra barreira que Maria Carolina precisou romper na profissão.
“No cursinho pré vestibular, foi a primeira vez que entrei em contato com pessoas de uma classe social totalmente diferente da minha e ouvi frases absurdas: ‘Com todo respeito à profissão, mas aqui não é lugar do filho do pedreiro’ [o pai de Carolina é auxiliar em serviços gerais]. É absurdamente comum se referirem a nós como ‘filhos do (profissão dos genitores)’. As ações afirmativas possibilitam lugar de honra aos nossos pais, avós. Então, sim, a filha da empregada é médica!”, ressaltou.
Reestruturação social
Assim como Carolina, estudantes de todo o Brasil viram na reserva de vagas uma possibilidade de competir de forma menos desigual por um lugar no Ensino Superior público. E, dessa forma, puderam transformar a própria realidade e a de grupos socialmente excluídos. Para o professor Reginaldo Ferreira, a chegada de pessoas pretas e pardas à universidade, por exemplo, e a consequente conclusão do curso superior por esses estudantes possibilitam uma reestruturação social, mesmo que ainda muito lenta.
“Quando a gente pensa no ingresso de pretos e pardos nas universidades, a gente pensa também que eles são aqueles egressos do futuro. (…) Então, a gente tem um número maior hoje de pessoas pretas e pardas formadas. Era muito difícil termos médicos pretos, médicas pretas, por exemplo. (…) Algumas dessas pessoas já têm consciência da importância do reconhecimento da identidade racial. Quando sai formado, sai com foco também em reforçar essa luta”, explicou.
10 anos da Lei: Desafios
Depois de dez anos da Lei de Cotas e das mudanças que esse dispositivo legal provocou no Ensino Superior público brasileiro e na vida das pessoas, nem tudo está resolvido. Ainda é preciso avançar no aprimoramento da legislação e nos mecanismos de acesso e permanência.
A lei prevê uma revisão por parte do Congresso Nacional depois de dez anos de vigência. Entretanto, o texto não estabeleceu como será feita essa revisão nem que critérios esse processo deve seguir. Enquanto não passar por alterações, a política de cotas continua valendo conforme o texto de 2012. Além de não haver prazo para sua extinção, a legislação só pode ser alterada ou revogada por lei.
Ao comentar os desafios futuros, em uma possível revisão da lei, o professor Reginaldo reforça a importância de garantir o acesso e a permanência dos/as estudantes que ingressam por meio de cotas. Em dez anos, por exemplo, ainda não foi possível superar a entrada de pessoas pretas e pardas nas universidades em relação ao ingresso de pessoas brancas. Ele cita o próprio caso da UFCA.
“Se tivéssemos conseguido, na nossa universidade, a olho, deveríamos encontrar pelo menos meio a meio de pretos e pardos e brancos. A nossa população de pretos e pardos passa de 50%. A gente teria que ver 50% em todos os espaços, mas ainda não conseguimos. Em dez anos, não resolveu”, ressaltou.
Na opinião do professor, para isso ser possível, é preciso trabalhar também em outras políticas de base, não só relacionadas à Educação. “Tem que ter uma estrutura social para as famílias daquelas crianças que estão na Educação Básica. É muito mais complexo do que só investir na Educação. Não temos equidade de forma efetiva ainda”, destacando a importância de garantir direitos sociais à população negra em várias dimensões da vida.
O outro desafio apontado por Ferreira é a permanência de quem conseguiu ingressar. “Muitos estudantes saem de lugares distantes. Precisam de apoio logístico-financeiro. A atual política que estamos vivendo hoje, de corte nos investimentos em Educação, está piorando a situação”, disse.
Acesso à pós-graduação
Outro desafio é a garantia legal das cotas na pós-graduação. Muitos programas estabelecem reservas de vagas nos seus editais, porém ainda não é obrigatório. Na UFCA, a Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação (PRPI/UFCA) está trabalhando em uma resolução para normatizar a política de cotas na pós-graduação da Universidade.
Mesmo sem ter ainda uma resolução que oriente essa reserva de vagas, a UFCA já incluiu cotas em suas seleções, como é o caso do edital do Programa de Pós-Graduação em Biblioteconomia. Na seleção, há reserva de vagas para pessoas com deficiência, pretos e pardos, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais.
Serviço
Diretoria de Comunicação
dcom@ufca.edu.br