“Ainda é uma doença perigosa, quando não tratada adequadamente”, diz professora da Famed/UFCA sobre a hanseníase. Janeiro Roxo marca conscientização sobre a doença

Publicado em 31/01/2022. Atualizado em 31/10/2022 às 15h13

Reprodução: Jornal da USP

Com sentido original de “marca, cicatriz ou sinal”, a palavra “estigma” pode ser compreendida, de forma resumida, como uma valoração social negativa de determinada característica de um indivíduo ou de um grupo. Doenças podem se tornar fatores de risco para seus acometidos não apenas pelos sintomas que provocam, mas por limitações sociais possivelmente implicadas, sobretudo no caso das enfermidades cuja fisiopatologia (estudo das funções do corpo humano durante uma doença) ainda é desconhecida (de todo ou em parte), em ambientes de baixa difusão de informações de qualidade ou mesmo de desinformação (propagação de informações falsas).

Aids e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), tuberculose e hanseníase são apenas alguns exemplos de doenças estigmatizantes. Sobre a última – que chegou a suscitar a construção de “hospitais colônia”, para seus acometido, até meados do século 20 –, as primeiras referências à hanseníase datam do século 6 a.C, possivelmente originada no Oriente e difundida no mundo (acredita-se) por tribos nômades ou por navegadores.

Estigmatização e preconceito

De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz – link para uma nova página), antigamente, a enfermidade era associada ao pecado, à impureza e à desonra, pela falta de conhecimento sobre como a hanseníase era transmitida e sobre como se desenvolvia. Por essa razão, a doença foi confundida frequentemente com outras enfermidades, como as venéreas. Daí o preconceito em relação aos seus acometidos: a ideia de que a transmissão da doença se dava necessariamente por contato corporal, muitas vezes de natureza sexual e, portanto, pecaminoso.

De acordo com o professor de Neurologia na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Cariri (Famed/UFCA), Marcos Bezerra da Cunha, a história da hanseníase está relacionada com uma herança medieval de estigmatização e preconceito extensivo ao Brasil, considerando que as medidas das autoridades sanitárias para prevenir a transmissão da doença consistiam no confinamento e no isolamento de doentes, por tempo indeterminado, em hospitais colônia conhecidos como “leprosários”, o que caracterizava a oficialização dos estigmas relacionados à hanseníase: “Apesar dos avanços da Ciência, da descoberta da cura e dos esforços dos serviços de Saúde, isso não é suficiente para a desmistificação de conceitos errôneos sobre a hanseníase, em função da herança milenar de estigmatização e do preconceito, alicerçados na Idade Média”, disse Marcos.

Ainda de acordo com o docente – referência nacional em lesões neurológicas por hanseníase – o padrão crônico da doença e sua associação com a pobreza são fatores estigmatizantes na atualidade.

Substituição do termo “lepra” por “hanseníase”

Até 1975, a hanseníase era conhecida no Brasil como “lepra”. De acordo com Marcos Cunha, naquele ano, o professor carioca e médico dermatologista Abrahão Rotbeg (1912 – 2006, link para uma nova página), com destacado legado em hanseologia, sugeriu, em parceria com outros grandes estudiosos da doença, uma mudança de terminologia de “lepra” para “hanseníase”: “Assim, o Decreto nº 76.078, de 4 de Agosto de 1975 (link para uma nova página) oficializou a adoção do termo hanseníase, contribuindo para reduzir o estigma do termo lepra, cujo aspecto místico e religioso reforça o caráter estigmatizante da doença”, explica o docente da UFCA.

De acordo com a professora de Dermatologia na Famed/UFCA, Lisiene Siebra, o estigma sobre a hanseníase pode até mesmo dificultar o diagnóstico da doença: “Por parte dos pacientes, devido aos fatores socioculturais; por parte de profissionais de Saúde, por possível desconhecimento dessa patologia”, disse a professora.

O que é a hanseníase?

A hanseníase é uma doença dermatoneurológica causada pela actinobactéria Mycobacterium Leprae, que atinge os nervos e se manifesta na pele. Nos seres humanos, a hanseníase pode causar:

  • manchas na pele, com alteração da sensibilidade térmica, dolorosa e/ou tátil;
  • comprometimento neural periférico em mãos, pés e/ou face;
  • Dor e sensação de choque, fisgadas e agulhadas ao longo dos nervos dos braços, mãos, pernas e pés;
  • Caroços e inchaços no corpo (em alguns casos, avermelhados e doloridos);
  • diminuição da sensibilidade e/ou da força muscular de olhos, mãos e pés;
  • áreas com diminuição dos pelos e do suor.

Tempo de Incubação

Um dos fatores que dificultam o diagnóstico é o elevado tempo de incubação (espaço de tempo entre a infecção e a manifestação dos sintomas) da hanseníase, na comparação com doenças como a covid-19 (cujo tempo de incubação é contado em dias). O período entre o contato com bactéria até o aparecimento dos primeiros sintomas é, geralmente, entre 3 a 6 anos.

De acordo com o Ministério da Saúde, é preciso ter atenção às diversas formas de manifestação da hanseníase. Isso porque há pessoas que podem estar doentes e apresentar alteração neural, sem a presença de manchas. Também há manchas que surgem no corpo que nem sempre despertam incômodo. Outras manchas podem apresentar diferentes colorações (esbranquiçadas, avermelhados ou amarronzadas), podendo ou não causarem dor ou coceira. Quanto ao local de surgimento, é possível que apareçam manchas em qualquer área do corpo, não apenas nas regiões mais comuns.

Transmissão

A transmissão da hanseníase se dá por meio das vias aéreas superiores. Quando uma pessoa com hanseníase, na forma infectante da doença e sem tratamento, elimina o bacilo para o meio exterior (por tosse ou espirro, por exemplo), ela pode infectar outras pessoas suscetíveis. Ao contrário do que ocorre com a covid-19, no entanto, é improvável que o contágio ocorra em um contato rápido, sendo necessária uma rotina de contato para a transmissão. Além disso, o desenvolvimento da doença vai depender da resistência imunológica da pessoa que recebe a carga bacilar. Por esses motivos, a maioria das pessoas que entra em contato com os bacilos não desenvolve hanseníase.

Tratamento

“No caso de suspeita, a pessoa deve procurar a unidade de Saúde do seu bairro, na qual o/a médico/a poderá encaminhá-la para a atenção secundária, para a elucidação do seu diagnóstico”, explica professora Lisiene.

O tratamento da hanseníase é feito por meio da Poliquimioterapia (PQT), que mata a bactéria e interrompe a transmissão da doença. Esse tratamento é oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e garante a completa cura da doença. Não há necessidade de internação para tratar a hanseníase.

“A hanseníase ainda é uma doença perigosa quando não tratada adequadamente, porque pode levar a deformidades permanentes. Então, o diagnóstico precoce previne sequelas como limitações físicas, como perda de força ao usar as mãos ou ao caminhar, complicações como queimaduras e outras”, ressalta a docente da UFCA.

“O diagnóstico deve ser feito com a maior brevidade e o tratamento iniciado, evitando sequelas definitivas. O atendimento na Unidade de Saúde, a medicação, a fisioterapia e alguma eventual cirurgia não têm nenhum custo para o/a paciente”, destaca professor Marcos.

O dia 30 de janeiro foi destacado como Dia Nacional de Combate e Prevenção da Hanseníase, para que a conscientização sobre a doença diminiua o estigma em torno da enfermidade, levando ao diagnóstico precoce e, assim, à evitação de sequelas permanentes. Além disso, a redução desse estigma passa pela extinção do termo “lepra” na referência à hanseníase, o que é uma manifestação de respeito à dignidade dos acometidos pela doença.

*Com informações do Ministério da Saúde, da Fiocruz, da Associação Brasil, Saúde e Ação (Brasa) e do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan)

Serviço

Faculdade de Medicina (Famed/UFCA)
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